Novo artigo " O velho hábito de complicar as coisas "

17/09/2014 20:13

 

 

O linguista Ferdinand de Saussure definiu com extrema propriedade os conceitos de inovação e tradição, quando fala sobre propagação das ondas linguísticas. Ao primeiro movimento - o da inovação - o mestre denomina "força do intercurso", que tem a ver com nossa capacidade de aceitar que você não fala do mesmo jeitinho como se falava no século passado ou há 10, 5, meia hora atrás. Se bobear, você incorporou a seu vocabulário uma nova gíria, um jargão profissional, um modismo das redes sociais, um estrangeirismo, uma nova regência ou concordância verbal, que pintaram na semana passada. Bobeou, você já sai falando. Fazer o quê, cara pálida. O novo sempre vem. A escrita, mais lenta, acaba incorporando (ou não) essas mudanças. Só pra citar exemplos da nova safra:

      1. Você já reparou que hoje tudo é junto?

•    Peça informações junto à Anac (em vez de "Peça informações à Anac").

•    Vamos interceder junto às autoridades (em vez de "Vamos interceder perante as autoridades").

Leia os jornais de amanhã. Você vai ficar zureta, com a muleta do junto.

2. Mais uma. Você já parou pra pensar que hoje tudo acontece?

•    Em 2014, o Carnaval aconteceu em março, quando geralmente acontece em fevereiro. (Em vez de Em 2014, o Carnaval caiu em março, quando geralmente ocorre em fevereiro.)

•    A exposição acontece no MAM, de 20 a 25 de agosto. (Em vez de "A exposição será realizada/ fica no MAM...)

O velho Aurélio define muito bem o significado de acontecer:

Acontecer, v. int. Realizar-se inesperada e imprevisivelmente; sobrevir; passar a ser realidade. 

Um minuto de silêncio, que o poeta vai falar

"Quando me acontecer alguma pecúnia [...], compro uma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a graxa e a fumaça do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização."

Carlos Drummond de Andrade

E vai por aí. Hoje, verbos como causar (Ele causou na balada), repercutir (vou repercutir a fofoca no Face), implicar (Isso implica na aceitação...) namorar (Ele namora com fulana) - e tantos outros - são usados em acepções e regências que escandalizam os puristas.

Ao segundo movimento - o da tradição - Saussure denomina "espírito de campanário". O conceito tem a ver com nossa capacidade de rejeitar os modismos, de não aceitar que a Dilma seja chamada de "presidenta", que usar gerúndio nos textos é expediente maldito, que delivery é o escambau e que a tradição não deve, nem de leve, ser maculada, conspurcada, denegrida (Ôpa. Usei um verbo proibido, em tempos politicamente corretos e socialmente incorretos. Mea culpa)

O interessante dessa história é que toda Língua sobrevive graças ao equilíbrio entre esses dois lados aparentemente opostos da mesma corda: o intercurso e o campanário. Se tudo que é novo fosse aceito sem protestos, eu, que sou carioca e moro na Tijuca, em pouco tempo estaria me expressando em Tijuquês. Ao atravessar o túnel, encontraria o Copacabanês, o Ipanemês e o Leblonsês e não entenderia mais bulhufas. O fenômeno se expandiria geometricamente, ad eternum, nas cidades e municípios. E aí nós, humanos, seríamos vencidos pelos macacos.

Por outro lado, se tudo que é novo fosse rejeitado sem concessões, a Língua também acabaria e viraríamos múmias mudas, dinossauros, estátuas de sal. O segredo então é o equilíbrio: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Veríssimo disse uma vez que "a Língua é culta, mas topa umas brincadeirinhas" E nisso ele estava muito certo.

Vai daí que encontrei na internet (hoje você encontra tudo na internet) um genuíno exemplo que ilustra o quanto o espírito de campanário, se exercido com intransigência e autoritarismo, pode trazer sérios danos à sociedade.

O texto a seguir me fez meditar sobre a resistência ferrenha de alguns segmentos do alto da pirâmide (frequentadores contumazes das arenas padrão Fifa) a tudo que é novo. Claro que fiz algumas alterações no original, evitando (Ó gerúndio maldito!) que você identifique a fonte ou meta sobre mim um baita de um processo. 

 

Brasília (DF), 05 de Julho de 2014.

 

Ao

ILUSTRÍSSIMO E DIGNÍSSIMO SENHOR

CARLOS TROPICAL

COORDENADOR DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

 

Senhor Coordenador,

Conforme contacto telefônico realizado no dia de hoje, vimos, mui respeitosamente, por meio do presente ofício, cumprimentá-lo e ratificar reunião com os membros do Grupo de Trabalho da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, para o próximo dia 29 de novembro, às 9 horas, na sede da Procuradoria Geral da República (Bloco "X", sala 302).

Outrossim, enviamos relatório adstrito às Unidades de Conservação, regularização fundiária das mesmas, sobreposição com terras indígenas e existência ou não de plano de manejo. Com fulcro no artigo 8º, inciso II, da Lei Complementar nº 75/93, solicita-se os bons ofícios de Vossa Senhoria no sentido de, em prazo não superior a 30 dias, remeter-nos informações detalhadas e atualizadas sobre os dados existentes no referido relatório em tela.

Aproveitamos o ensejo para renovar nossos protestos da mais alta estima e distinta consideração.

Atenciosamente,

 

                                                                         Ana Paula Rolando Lero

 

Você concorda comigo?

 

•    Das teses acadêmicas à comunicação corporativa, ainda somos estimulados a "encher muita linguiça", mesmo sabendo que essas "esticadas" comprometem a qualidade da informação.

•    Graças a seu jeito pedante e "jurássico" de escrever, a redatora só faz o leitor perder tempo. Ela ainda não sabe que, desde Adão e Eva, ninguém ainda se queixou de documento fácil de compreender.

•    O ranço colonial, que impingiu em boa parte da elite o conceito do "Quanto mais confuso, melhor", continua provocando estragos na sociedade brasileira.

•    "Outrossim", "Ilustríssimo Senhor", "Solicita-se os bons ofícios de Vossa Senhoria" e "referido relatório em tela" são exemplos de fórmulas desgastadas, que já deveriam ter sido deletadas (outro verbo novo) há muito tempo..

•    Mui respeitosamente? Nem Pero Vaz de Caminha!

•    O profissional que escreve como Dona Ana Paula Rolando Lero ainda não sabe que o mundo mudou. Não entrou no século XXI 

 

Melhor assim?

 

            Brasília, 5 de julho de 2014.

 

Ao Senhor

Carlos Tropical

Coordenador-geral de Unidades de Conservação

 

Senhor Coordenador,

Confirmamos reunião do Grupo de Trabalho da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, para o próximo dia 29 de novembro, às 9 horas, na sede da Procuradoria Geral da República (Bloco "X", sala 302).

Para sua apreciação, segue anexo relatório que trata da regularização fundiária das Unidades de Conservação, sua eventual sobreposição com terras indígenas e existência ou não de plano de manejo.

Solicitamos que V.S.ª nos envie, em até 30 dias, informações atualizadas sobre os dados constantes desse documento.

Atenciosamente,

Ana Paula Moderna

 

O texto de Dona Ana Paula me faz lembrar a sentença que eu li não faz muito tempo, cuja transcrição vai a seguir:

 

Assunto: Deferimento de pensão a neta de militar, órfã e beneficiária na data do falecimento de sua genitora beneficiária do de cujus.

Ementa:

A beneficiária da pensão a que alude o artigo 7º da Lei nº 3765, de 1960, exclusive a viúva, deve atender aos requisitos estabelecidos para configuração do direito alimentar na data em que se torna viável sua reversão, limitada a uma única vez.

No exercício de sua função constitucional de controle dos atos administrativos, adnumerados no item III do artigo 71 da Constituição, o egrégio Tribunal de Contas aprecia tão-só, os atos deferitórios ou de admissão, excluídos os denegatórios dos benefícios.

É dureza admitir que, por mais que se tente mudar, ainda impera soberano o conceito do quanto mais confuso melhor. Afinal, somos uma nação de homens sérios. E quem se expressa de maneira simples não é sério.

Pobre menina, pobre viúva, pobre Brasil.